Vitória: o silêncio da resistência
- Cláudia Felício
- há 7 dias
- 3 min de leitura
Por Cláudia Felício (autora best-seller, roteirista e crítica especializada em cinema)

Casa com toalhinha rendada?
Banheiro pequeno?
Reunião de condomínio caótica?
Temos! Em “Vitória”, Fernanda Montenegro interpreta Nina, uma senhorinha carioca que filma o tráfico do morro em frente de casa com o celular. Dirigida pelo genro, Andrucha Waddington, Fernanda Montenegro dispensa adjetivos como atriz.
O filme explosivo não quer ser explosivo e apelativo, descambado para a violência, é um um filme verdadeiro. Na literatura (e no cinema também), usamos muito a técnica narrativa do slow burn — que a gente vai cozinhando o espectador em fogo brando, sem pressa de chegar ao clímax.O filme é quase todo lento. Durante muito tempo, quase nada acontece. Mas não é um nada vazio, é o nada da vida real.
A rotina da protagonista Nina é lenta mesmo; ela é uma massagista aposentada que vive sozinha no Rio. Ela é o que vemos em tantas senhoras cariocas: sozinha, com a casa cheia de memórias, casa apertada, os móveis antigos, os paninhos de crochê, as toalhas rendadas. O filme passeia por essa casa como quem respeita o território de alguém (isso eu gostei). Só que do lado de fora, o mundo já desabou. O tráfico tomou conta do morro em frente; a cidade virou território de medo. E Nina, com seus gestos lentos e sua força discreta, decide fazer o que ninguém mais faz: filmar.
Com o tiro comendo, uma cena me chamou a atenção: a cena em que ela se esconde na banheira é de uma beleza triste e poderosa. Uma idosa dentro de uma banheira vazia, se agarrando ao que sobrou de segurança é um símbolo silencioso da solidão urbana e do abandono.
Agora, não posso deixar de falar da atuação da protagonista, temos que bater palmas de pé para Fernanda Montenegro. Com 94 anos, ela faz cenas de movimento com uma naturalidade que muitos atores jovens invejariam. Ela corre, abaixa, levanta, fecha a janela com força, se protege. O corpo em cena é um corpo presente, ativo, lindo de assistir.
Claro que o filme tem seus problemas. O arco do personagem Marcinho, o garoto que se envolve com o tráfico, para mim, foi rápido demais, faltou, como diria vovó, “faltou sustância”. Por outro lado a vizinha Bibiana é uma graça: uma mulher trans interpretada com doçura e dignidade pela Linn da Quebrada. Ela funciona como uma espécie de parceira afetiva e solidária da Nina, tem até uma cena que dançam bolero juntas. Ela é cabeleireira e é a vizinha que todo mundo queria ter: fofa e atenta ao que importa.
Aliás, falando em vizinhança, tem uma cena da reunião de condomínio que é antológica. Parece com o meu prédio? Parece. Parece com o prédio de todo mundo? Também. Aquele desfile de pequenas mesquinharias, comentários atravessados e discussões que não levam a nada é puro Rio de Janeiro. Puro Brasil.
O filme engrena mesmo quando os vídeos gravados por Nina começam a circular, quando a polícia aparece, quando o mundo da casa precisa se confrontar com o mundo da rua, o impacto chega com força.
Vitória não é um grande espetáculo. Não é um filme de tirar o fôlego. É um filme feijão com arroz gostoso — mas feito com carinho, respeito e verdade. Um retrato digno de uma mulher comum que se recusa a ser silenciada.
E acho que, no final das contas, a maior beleza do filme seja essa: mostrar que o heroísmo não está nas grandes cenas, mas nos pequenos gestos. Está no corpo que ainda se move, na xícara que se quebra, na vizinha que filma, na vizinha que ajuda: estão aí as coisas mais humanas que definem a mim, a você e a todo mundo.

Cláudia Felício

Comments