O palacete São Cornélio foi um legado do testamento do comendador João Martins Cornélio dos Santos à Santa Casa, que recebeu no ano de sua morte o antigo prédio número 2 da rua do Catete, para receber e educar crianças pobres. Falecido em um sábado, dia 10 de novembro de 1894, após longa enfermidade, deixou a viúva, Dona Cecília Breves, como inventariante.
A construção, com fachada neoclássica e características arquitetônicas do Renascentismo italiano, paredes decoradas, teto com ornamentos em estuque, maçanetas de cristal veneziano, tinha em seu salão principal um imenso lustre ornado com mangas de cristal. O imóvel, com pátio interno e caramanchão, estava avaliado em trezentos contos de réis. Além do prédio, o comendador doou dez contos de réis em apólices da dívida pública brasileira.
Cornélio dos Santos foi comendador da Ordem de Cristo, fidalgo cavaleiro da Casa Real de Portugal, oficial da Imperial Ordem da Rosa, detentor da Medalha de Honra da Caixa de Socorros D. Pedro V e da Cruz Humanitária da Sociedade Portuguesa de Beneficência. No campo comercial, foi um importante comissário do café e negociante de gêneros do país, com endereço de sua casa comercial na rua dos beneditinos, número 15, sob a firma Cornélio & Companhia. Foi também diretor da Estrada de Ferro de Petrópolis e presidente da Companhia de Serviços Marítimos.
Todavia, a implantação do novo asilo no velho palacete de 1862 ficou por conta do empenho e obra do conselheiro Paulino José Soares de Souza, ex-presidente do senado imperial e chefe do partido conservador no Rio de Janeiro. Paulino era o líder dos saquaremas, foi contra a lei do Ventre Livre de 1871 e a Lei Áurea, de 1888, que aboliu definitivamente a escravidão no Brasil.
Com a chamada Proclamação da República, o conselheiro Paulino se retirou da vida política e passou a tratar dos seus interesses empresariais. Em 1889 foi eleito Provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, inaugurando, finalmente, o Asylo São Cornélio em 16 de agosto de 1900, com apenas 11 meninas, vindas do já sobrecarregado Asylo da Misericórdia, administrado pela mesma entidade. A instituição tornou-se uma referência na área da educação. Na grande exposição de Saint Louis, de 1904, ganhou, com outras instituições de ensino brasileiras, a medalha de ouro na categoria Instrução Especial em Comércio e Indústria.
No final da década de 1920 foram construídos novos dormitórios, uma sala de banhos, enfermaria, além de um gabinete médico-dentário. Com o tempo, o número de meninas atendidas cresceu. Foram criados os regimes de internato, semi-internato e externato para os cursos primário e vagas para “agregadas”, meninas solteiras, ex-internas.
O educandário era bem administrado pelas irmãs da ordem das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, atingindo seu auge no final da década, com a autossuficiência econômica, sem necessidade de repasses de dinheiro da Santa Casa.
Em 1938 o prédio foi tombado, mas o escritor Gastão Penalva, em sua coluna no Jornal do Brasil, não gostou: “Belo edifício, sem dúvida, muito nos moldes do ilustre Montigny, (...). Mas sem nada que o ligue especialmente à nossa crônica”. O autor preferia preservar o prédio da “Roda dos Expostos”, por serviços prestados e antiguidade. O prédio do asilo passou por sua primeira restauração em 1944, trabalho do antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Na década de 1960 veio a decadência. Um punhado de irmãs e outro tanto de agregadas cuidavam de cerca de 100 crianças. Apesar das adaptações, o lugar e as instalações estavam obsoletas e inadequadas. As freiras recusavam de 20 a 30 pedidos de recolhimento de meninas órfãs ou de famílias pobres, por dia.
O sonho das freiras era a transferência do asilo para um grande terreno em Águas Férreas, localidade do bairro Cosme Velho, mas faltava dinheiro. Portanto, se contentavam com uma nova lavanderia e um novo consultório de dentista. Em 1969, o asilo, via Divisão do Patrimônio Artístico Nacional, recebeu parte de uma verba do Conselho Interamericano de Cultura da OEA para reparos de emergência no telhado e no teto de estuque, que ameaçavam desabar. Com o fechamento da instituição, metade das meninas foi realocada no Educandário Santa Teresa e o restante para o São Clemente, ambos administrados pela Santa Casa.
No mesmo ano, o Conselho Federal de Educação autorizou o funcionamento da Faculdade Souza Marques no velho casarão, para o ano letivo de 1970, visando acomodar os extras de medicina, os aprovados, mas que ficaram sem vaga. O último vestibular de medicina da Souza Marques, tendo como opção o velho palacete, então chamado “campus da Glória", foi em 1996.
Palácio São Cornélio. Aspecto atual. 2024. Foto do autor
Em 2009, o prédio passou a ser administrado por uma cooperativa de médicos, a Gespar, que tentava construir um hospital no local, mas os planos não foram adiante e o caso parou na justiça. Desde então, a direção da Santa Casa tenta vender o prédio e o terreno, sem sucesso. Atualmente, o edifício se encontra abandonado, em ruínas.
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Flavio Santos
Bacharel e licenciado em História pela UFF Niterói. Tem 25 anos de experiência em pesquisa histórica, junto a historiadores e brasilianistas.
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