Haroldo Bianchi é ator formado pelo Teatro Escola Macunaíma, um dos mais tradicionais na cidade de São Paulo. Durante anos, também atuou como Promotor Público, outra grande paixão.
Seja nos palcos ou na promotoria, seu compromisso maior sempre foi interferir de forma positiva na vida das pessoas.
Vivendo Creonte, o Rei de Corinto, na peça “Memórias do Mar Aberto: Medeia Conta Sua História”, escrita por Consuelo de Castro e dirigida por Reginaldo Nascimento (tendo como assistente de direção Amália Pereira), nesta entrevista o artista fala sobre o espetáculo, relembra alguns momentos de ambas as carreiras e aponta dicas para quem está em início de carreira. Confira!
Você é ator, mas também atuou na Promotoria Pública. De onde vem a paixão pelos palcos?
A paixão pelas artes cênicas é antiga, remonta minha infância e tem muito a ver com os espetáculos circenses que eu assistia em Santa Cruz do Rio Pardo, interior do Estado de São Paulo, minha terra natal. O circo sempre foi mágico para mim, e, já àquela época, eu dizia aos familiares que queria ser palhaço. Me lembro que ficava esperançoso que algum daqueles artistas me chamasse até o picadeiro para participar das brincadeiras que tradicionalmente eles faziam com as crianças da plateia. A ficha caiu mesmo quando um circo-teatro se instalou na cidade e, ao final daquelas costumeiras atrações circenses, a companhia apresentou a peça intitulada “…
E O Céu Uniu Dois Corações”. Uau! Era a primeira vez que eu tinha contato com uma cena de teatro e aquele momento foi, sem dúvida alguma, um “start” para mim. Eu, que até então, não tinha noção alguma do que era o teatro como arte da representação dramática, fiquei absolutamente arrebatado com aquela história e a forma como ela foi contada. Jamais esqueci. Não demorou muito para que eu passasse a reunir amigos de infância para “brincar de circo” e apresentar nas nossas respectivas casas os “espetáculos” destinados às outras crianças do bairro. Além disso, toda atividade escolar que tivesse alguma ligação com a ideia de “contar uma história”, lá estava eu, inicialmente nos bancos escolares e, depois, já na adolescência, no grupo de jovens da Igreja de São Bendito.
Não posso falar de minha terra natal sem dizer que sou conterrâneo do querido e inesquecível ator e produtor Umberto Magnani Neto (1941-2016), premiadíssimo no teatro, cinema e televisão, e que é uma referência para mim. Em nossa cidade, em justa homenagem a ele, o antigo “Cine São Pedro” leva o seu nome: “Palácio da Cultura Umberto Magnani Neto”, o que muito honra a mim e a todos os santa-cruzenses.
Um promotor seria também um contador de histórias?
Eu sempre digo que, além das artes cênicas, houve uma outra grande paixão na vida que é o Ministério Público, Instituição na qual trabalhei por mais de três décadas. Durante esse período todo, tive a oportunidade única de conviver diretamente com milhares de pessoas, as quais, por força da minha profissão, dividiram comigo seus problemas, seus dramas e suas tragédias pessoais. Não posso negar que o ator no qual me transformei é também consequência dessa vivência tão próxima com essa humanidade que envolve a todos nós e que me trouxeram elementos para poder contar de uma boa história.
Os casos da vida real, de alguma forma, podem ter contribuído para seu mergulho na dramaturgia?
Claro! É a arte imitando a vida. Na composição de uma personagem, os casos da vida real sempre contribuem, de algum modo, para definir os rumos daquele drama, daquela tragédia ou daquela comédia e, por consequência, os contornos de cada personagem. É maravilhoso quando um artista consegue reproduzir um acontecimento cotidiano.
Às vezes nos reconhecemos numa personagem da TV, do Cinema, do Teatro e dizemos “Nossa, tão eu!” (risos). Outras vezes lembramos de alguém de nosso convívio a partir de uma personagem interpretada num filme, numa novela, numa peça de teatro (“Tão fulano...” risos). Enfim, para um ator, o cotidiano das pessoas (como andam, como falam, como riem, como choram, seus tiques etc) sempre será uma fonte inesgotável de inspiração na construção de uma personagem.
Sabemos que o teatro é feito de improviso. Cada momento é único, imprevisível e mágico. Em 2003 houve um perrengue numa apresentação que você faria ao final de um curso livre de teatro. Conte pra gente esse momento na sua carreira!
De regra, tudo o que acontece no palco decorre de horas e horas de ensaios e marcações precisas e exaustivamente repetidas. O improviso só acontece a partir de algum acontecimento pontual, não desejado, como, por exemplo, quando um dos atores esquece o texto a partir da “deixa” dada pelo outro ator. Nesse caso, “improvisar” é uma forma de “contornar” aquele acontecimento, com o cuidado, sempre, de não interferir na essência do espetáculo. E há, de outro lado, o “teatro do improviso”, sem textos decorados e, este sim, destinado à interpretação de algo que não foi preestabelecido entre os artistas.
Bem, vamos ao perrengue da pergunta... Eu morava na cidade de Bauru e estudava artes cênicas no “Curso Livre de Teatro”, então ministrado pelo querido Paulo Neves e já sabíamos que, ao final desse curso, nossa apresentação seria no “Teatro Municipal Celina Lourdes Alves Neves” (que leva o nome da mãe de Paulo). Como éramos vários alunos, fomos divididos em grupos com os respectivos diálogos a serem encenados no palco. Eu e outro colega passamos a ensaiar um suposto diálogo entre um garoto e o físico alemão Albert Einstein (minha personagem), a respeito da bomba atômica. Eu estava muito feliz e, ao mesmo tempo, ansioso por aquele momento. Tudo ia muito bem até que, para minha frustração (risos), às vésperas de nossa apresentação, o ator que fazia dupla comigo, repentinamente precisou mudar-se com a família para outra cidade e, infelizmente, não houve tempo hábil de substituí-lo e, menos ainda, “improvisar”.
Resultado: não aconteceu minha “estreia” num palco de Teatro. Claro que, hoje em dia, esse acontecimento é cômico (risos), mas, na época... foi trágico para mim! (muitos risos).
Você é formado pelo Teatro Escola Macunaíma. Qual é a importância do palco para o ator?
O palco é um lugar sagrado para o ator. Não o escolhemos; ele nos escolhe e nos acolhe. Por isso, quando pisamos naquelas tábuas, o fazemos com reverência, com respeito e com compromisso. Reverenciamos os artistas que nos antecederam; respeitamos aqueles que ainda virão; e nos comprometemos a honrar nosso ofício. Estar no palco não é um privilégio, mas uma missão: a de interferir positivamente na vida de outras pessoas a partir daquela história que ali está sendo contada.
Sua trajetória como ator vai desde Tchékhov, passando por Plínio Marcos e chegando em Nelson Rodrigues. Mergulhar nessa diversidade dramatúrgica te trouxe quais habilidades cênicas?
Sem dúvida. Ao transitar pela comédia, pelo drama e pela tragédia, fui percebendo que o domínio das minhas habilidades cênicas vem acontecendo de forma cumulativa. O exercício do ofício do ator tem me trazido um aprendizado em “camadas” que se manifesta através de cada personagem que me habita, desde a leitura do texto, passando pelos ensaios até chegar aos palcos. Isso não para nunca. E, mesmo no palco, essa “persona” continua me ensinando algo sobre ela em cada apresentação.
Atualmente você está no elenco de “Memórias do Mar Aberto: Medeia Conta a Sua História”. O que este espetáculo traz de novidades ao público?
A narrativa clássica de Medeia, escrita por Eurípides em 431 a.C, retrata uma mulher que sente repudiada por Jasão, seu marido e grande amor, que resolveu casar-se com a filha do Rei Creonte. Então dele resolve se vingar, matando os próprios filhos. Na peça “Memórias do Mar Aberto: Medeia Conta Sua História”, escrita em 1997, a dramaturga brasileira Consuelo de Castro dá conotação contemporânea à personagem de Medeia, de tal modo que a traição experimentada por Medeia não se restringe apenas à vida amorosa dela com Jasão, mas se expande também para a traição no campo político e social, diante da aliança política firmada por ele com o Rei Creonte (meu personagem). Aqui, a morte dos filhos não é por ela desejada, mas acontece por acontecimentos que fugiram ao seu controle.
No seu texto, Consuelo de Castro mostra a Medeia que tomou o lugar de Jasão e que chefiou a Expedição dos Argonautas, não por amor a ele, mas pelo ideal de paz entre os povos do Ocidente e do Oriente. Esse texto maravilhoso tem a direção impecável do mestre Reginaldo Nascimento e da diretora assistente Amália Pereira e conta com atriz e atores absolutamente comprometidos com o espetáculo, rodeado de um primoroso cenário e de figurinos impecáveis. Numa palavra? IMPERDÍVEL!
Sua trajetória como ator também passa pela sétima arte. “Stand Up – Minha Vida é Uma Piada” está disponível no Telecine e Globoplay. Em sua opinião, quais são as maiores diferenças entre interpretar para o teatro e cinema?
Fiquei muito honrado em participar desse longa-metragem, a convite do Diretor de Elenco Paulo Letier e do Diretor Miguel Rodrigues. Sim, a linguagem do cinema é bem diferente da linguagem do teatro e essa foi uma das razões que me motivaram a aceitar esse desafio. Basicamente, a interpretação para o teatro envolve projeção de voz e algum exagero nas expressões faciais, tudo de molde a alcançar a plateia toda. E no palco, como não há a possibilidade de edição de cena, os atores/atrizes encenam o texto até o final, ininterruptamente.
Já no cinema, a tecnologia proporciona ao Diretor e ao elenco muitas possibilidades. Por exemplo, a câmera é a grande aliada para a captura do olhar, da emoção, da voz, tornando tudo mais natural. E quando algo desagrada a direção, a cena é refeita, quantas vezes forem necessárias até atingir o objetivo final.
Seu trabalho também se estende às campanhas publicitárias na TV. É preciso ser bom na persuasão, já que o objetivo desses institucionais geralmente é ofertar algum produto ou serviço? Por quê?
A criatividade dos produtores das campanhas publicitárias aliada ao poder de persuasão do ator são mecanismos bastante utilizados para convencer o público a consumir determinado produto ou serviço. Cabe ao ator, antes de vincular seu nome àquela marca, verificar se a empresa está compromissada com o meio ambiente e com a eficácia e a qualidade do produto ou serviço.
Dentre o palco, o cinema e a televisão, você tem algum veículo de sua preferência? Por quê?
Eu iniciei minha carreira no teatro, já fiz cinema, trabalhei em alguns audiovisuais e, claro, me interesso muito pela televisão, onde ainda não tenho nenhum trabalho. Eu reconheço nesses três veículos de comunicação o ambiente favorável e necessário para que, cada um, a seu modo, seja verdadeiro instrumento de transformação social, influenciando positivamente – e apenas positivamente – a sociedade.
Com uma trajetória tão extensa na arte de interpretar, quais as dicas que você daria para aqueles que estão iniciando na carreira?
- Estejam conscientes de que a vida do profissional das artes cênicas não é nada fácil. Infelizmente, no Brasil, não dá para viver apenas de teatro, ainda mais no início da carreira. Por isso, muitos artistas mantêm uma profissão paralela ou iniciam o ofício depois da aposentadoria.
- Mesmo depois de cumprirem a necessária formação profissional nas artes cênicas e alcançarem o Registro Profissional expedido pela Delegacia Regional do Trabalho (daí o nome DRT), mantenham-se comprometidos com o aprimoramento do ofício, participando de oficinas e cursos, indo ao teatro com frequência, observando os colegas em cena etc.
- Não esperem que grandes oportunidades venham até vocês! Caminhem em direção a elas, valendo-se do ator-criador que já existe em vocês. Observem o cotidiano das pessoas e, a partir dele, desenvolvam pequenos quadros e esquetes; utilizem-se do audiovisual; façam vídeos para suas redes sociais; apresentem-se em saraus, em escolas e em teatros do seu bairro; integrem o elenco de agências especializadas em casting de atores para publicidade, cinema, televisão etc. Enfim, tornem público o seu ofício de ator.
- E o mais importante: leiam sempre e muito. O tempo todo.
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Crédito das fotos: Arquivo Pessoal
Xandy Novaski
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