A ucraniana mais carioca que já existiu atendia pelo nome de Clarice Lispector. Recentemente, uma de suas obras foi adaptada para o cinema. "A paixão segundo GH", do livro homônimo, é uma obra que atravessa gerações com sua profundidade existencial e misticismo íntimo. Transportada para as telas, essa história desafia não apenas a narrativa, ela desafia também nossas emoções mais profundas.
A direção do Luiz Fernando Carvalho foi simplesmente brilhante: senti aflição quando GH passou a faca na parede, senti uma repulsa absurda na cena da barata – que é o incidente catalisador, inclusive. Tive a impressão de que estava assistindo um outro filme como "O Exorcista" porque, de tanto nojo, eu nem conseguia olhar para a telona, fechei os olhos. Tenho certeza de que várias leitoras desta revista partilham comigo o asco pelo referido animal. Brincadeiras à parte, o filme traz toda a tensão da obra original, gerada por um fluxo de consciência constante.
Luiz Fernando Carvalho, conhecido por sua abordagem experimental e estética poética, assumiu esse desafio ao adaptar "A paixão segundo GH". Ao contrário de narrativas convencionais, GH nos leva para dentro da mente da protagonista. O filme, assim como o livro, é menos sobre ação e mais sobre reação, com um fluxo de pensamento que se mantém contínuo e envolvente. Aqui, permitam-me comparar "A paixão segundo GH" com um livro que julgo ser uma das maravilhas da nossa literatura: "Grande Sertão Veredas", de Guimarães Rosa. Assim como Riobaldo, GH vive uma travessia interna, um diálogo com sua própria trajetória.
A comparação com "Grande Sertão: Veredas" é legal quando se leva em conta a construção narrativa. Pensa comigo: ambas as obras começam com um mergulho nos íntimos dos protagonistas, utilizando o fluxo de consciência para guiar o espectador/leitor. No filme "A paixão segundo GH", essa técnica é explorada com precisão por meio da montagem e da direção de fotografia. O uso de planos fechados e longas sequências sem diálogos evoca o ritmo da prosa de Lispector, em que cada palavra carrega peso e cada pausa é uma oportunidade de reflexão.
A direção de Luiz Fernando Carvalho dialoga diretamente com o simbolismo visual, algo que ele já explorou em outras produções. O apartamento de GH, cenário principal do filme, se torna uma extensão da psique da personagem, assim como os vastos sertões são uma metáfora para a jornada de Riobaldo em "Grande Sertão Veredas".
A fotografia, de tons neutros e iluminação natural, cria uma atmosfera opressiva, refletindo o desconforto existencial da protagonista. O filme consegue capturar o fluxo alucinante de interpretações e imaginações não apenas pelas palavras, mas pelas imagens. Luiz Fernando Carvalho transforma o apartamento de GH num labirinto simbólico, onde cada cômodo, cada parede, parece reverberar suas angústias e descobertas. A direção de arte, minimalista e opressiva, contrasta com a riqueza dos pensamentos de GH.
Maria Fernanda Cândido é a alma do filme; que entrega! Sua GH é uma mulher em desconstrução, em um processo de redescoberta que a devasta e a renova. Sua interpretação vai além das palavras e das imagens, conseguindo transmitir a profunda solidão e a revelação dolorosa que GH enfrenta. Há algo meio visceral na forma como ela se movimenta pelo espaço, nas pausas e no silêncio; silêncio este que ela usou muitíssimo. Maria Fernanda faz os movimentos econômicos, o olhar fixo, as pausas precisas. Ela constrói uma GH silenciosa, mas poderosa, que comunica sua angústia não pelas palavras. É impossível não se sentir arrastado por sua dor, sua confusão e, finalmente, sua aceitação.
Adaptações literárias sempre carregam o desafio de manter a essência do original enquanto aproveitam ao máximo os recursos audiovisuais e, vamos combinar que, transportar uma obra de Clarice para o cinema não é lá uma tarefa muito fácil. A adaptação cinematográfica de "A paixão segundo GH" é um dos projetos mais desafiadores e inovadores do cinema brasileiro recente. Fui ao cinema com uma certa desconfiança de como o roteiro iria dar conta da história. Melina Dalboni resolveu muito bem e conseguiu segurar uma narrativa difícil e, quase o tempo inteiro, com uma única personagem em cena: GH.
Tecnicamente, "A paixão segundo GH" é uma obra que explora os limites da narrativa cinematográfica. A direção de Luiz Fernando Carvalho e a atuação impecável de Maria Fernanda Cândido fazem desta adaptação uma experiência visualmente rica e psicologicamente envolvente.
O existencialismo de Clarice está presente na telona ao traduzir para o cinema o fluxo de pensamento e a profundidade introspectiva, mostrando que o silêncio e o espaço visual podem ser tão poderosos quanto as palavras.
Cláudia Felício (roteirista, escritora best-seller e crítica especializada em cinema)
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Cláudia Felício - colunista da Revista do Villa
Me deixou curiosa para ver o filme!
Qualquer coisa sob seu olhar ganha um plus...parabéns!